quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

religião à portuguesa

Há qualquer coisa de bizarro no modo como a religião é vivida na cultura portuguesa. Vejamos: os mais importantes pensadores da religião cristã procuraram desde sempre distinguir a religião cristã, enquanto um sistema justificável e sofisticado de crenças verdadeiras, da mera crendice e da superstição. É verdade que podemos defender que, historicamente, esta atitude dos filósofos da religião teísta é meramente a continuação da atitude de Paulo, que precisava de vender o cristianismo a um povo civilizado e culto, no Império Romano, mostrando que o cristianismo era uma "filosofia superior" às filosofias pagãs, e não apenas uma crendice de povos ignorantes do deserto. Podemos argumentar, e é sem dúvida plausível, que a religião é intrinsecamente crendice, e que é na religião popular que se encontra a verdadeira religião, e não nas sofisticadas elucubrações dos mais importantes filósofos religiosos, de Agostinho a Tomás de Aquino, passando por Ockham e avançando até Leibniz ou até à actualidade, com Swinburne e Plantinga.

Apesar de tudo isto, a verdade é que há toda uma concepção sofisticada da religião, assim como toda uma tradição de discussão filosófica séria sobre estes temas. Ora, sempre que escrevo qualquer coisa neste blog tentando informar os leitores de tal discussão, tenho sempre uma reacção muito bizarra de alguns leitores crentes. A reacção varia entre a assunção de que realmente a religião é mera crendice popular, o que é uma afirmação surpreendente para um crente, e o protesto de que a religião está para lá do pensamento "logicista" — querendo com isto dizer o tipo de pensamento sofisticado e cuidadoso que é tradicional nesta área, tal como foi desenvolvido por Agostinho, Anselmo, Tomás ou Leibniz, para dar só uns exemplos.

O que pensar disto? Será que a religião à portuguesa tem de ser a religião da Titi do Raposão, que Eça descreve em A Relíquia? Uma religião feita de crendice e superstição? Um pensamento religioso hipócrita, sempre com medo que, ao pensar cuidadosamente, se descubra que afinal não há justificação defensável para a crença religiosa? Se for isto, é a suprema duplicidade intelectual: trata-se de afastar à partida a possibilidade de descobrir que a nossa crença religiosa é injustificável. Mas qualquer filósofo religioso diria que isto significa apenas que a fé destas pessoas é terrivelmente insegura: quem acredita realmente que a crença religiosa é justificável não tem medo de estudar cuidadosamente as bases de tal justificação, pois acredita firmemente que as vai descobrir.

Isto é deplorável, evidentemente. Mas é talvez surpreendente e informativo saber que uma razão para este tipo de atitude é... o cientismo. O cientismo é, em traços gerais, a ideia de que só a ciência e os métodos da ciência podem produzir resultados. De modo que se não vislumbramos tais métodos para discutir questões religiosas, se tudo o que vemos é a discussão aberta cuidadosa, com argumentos e contra-argumentos, objecções e refinamentos de posições, isso parece uma pura perda de tempo. Kant foi um dos primeiros filósofos a sofrer de cientismo e por isso declarou que todos os argumentos tradicionais a favor da existência de Deus eram meras ilusões, sendo intrinsecamente impossível provar se Deus existe ou não — o que ele queria dizer é que é cientificamente impossível provar tal coisa e não vale a pena andar com discussões estéreis. Acontece que esta posição é auto-refutante: pois se não se consegue provar cientificamente que Deus existe, nem que não existe, como raio conseguimos provar que não se consegue provar? Não é tal pretensa prova tão falha de cientificidade como qualquer tentativa de provar que Deus existe? Claro que sim. Essa pretensa prova é apenas um argumento tipicamente filosófico, tal como as provas tradicionais a favor da existência de Deus.

A procura da verdade provoca angústia a quem sofre de cientismo porque é tipicamente uma procura aberta, isto é, uma procura sem que tenhamos metodologias que garantam resultados. Esta angústia é um dos grandes disparates do nosso tempo, e o sistema de ensino em que estamos mergulhados tem muitas culpas no cartório. Muitas pessoas pensam que procurar a verdade só pode ser feito assim: vestimos uma bata branca, vamos para um laboratório, aplicamos as metodologias, e temos a garantia de obter resultados. Mas isto é apenas uma pequena parte da procura da verdade. Muitas vezes não sabemos sequer qual é a melhor metodologia; e não temos qualquer garantia de obter resultados. Que fazer, nessa circunstância? O cientismo diz-nos: abandona tal pretensão, pois só pode ser ilusão e sofisma. E assim a alternativa é um ateísmo ignaro ou a crendice da Titi do Raposão, que vê a religião apenas como uma espécie de masturbação espiritual, em que cada qual fala da fenomenologia da sua crendice, como se fosse a coisa mais interessante do universo.

Escusado será dizer, penso que as duas atitudes são insustentáveis e que se baseiam em confusão intelectual. Procurar a verdade é continuar a procurar mesmo que não tenhamos metodologias nem garantias. Procurar a verdade é pensar como pensamos normalmente, e não inventar sofistas sobre os limites do pensamento "logicista" — ignorando que, ironicamente, as únicas alternativas actuais ao pensamento "logicista" são precisamente as lógicas não-clássicas desenvolvidas nas últimas décadas, e não elucubrações sofísticas baseadas em jogos de palavras simplórios. Procurar a verdade é não deitar areia para os olhos das pessoas, não disfarçar um discurso redondo e circular com palavras caras e referências falsamente eruditas. Procurar a verdade é estudar quem discorda de nós, e não começar por escolher cuidadosamente os autores que dizem precisamente o que queremos ouvir, para depois os usarmos como a palavra final sobre o tema. Procurar a verdade é não impedir a discussão em curso pondo em causa os termos da própria discussão, sem qualquer razão convincente excepto o medo que temos de que tal discussão não justifique o que queremos justificar.

Finalmente, é importante dizer o seguinte: a generalidade das pessoas é incapaz de justificar adequadamente quer o seu ateísmo quer a sua crença religiosa. Isto é normal e não há qualquer problema com isso. Eu não sei justificar adequadamente a minha crença de que houve um Big Bang — não sou físico, não tenho os conhecimentos para isso. Faz parte da ciência e da filosofia a procura de justificação das nossas crenças mais básicas — por vezes descobrimos que têm justificação, outras vezes que não têm. Como somos muito limitados, quem sabe justificar o Big Bang não sabe geralmente justificar a sua crença ou descrença religiosa, e vice-versa. É conversando entre todos que podemos alargar a nossa compreensão das coisas. Mas isso exige que não se use a duplicidade intelectual para pôr fora de jogo tudo aquilo que à partida nos parece desfavorável às nossas crenças mais queridas. Estar disposto a abandonar as nossas crenças mais queridas é a condição de possibilidade da genuína procura da verdade.
Desiderio Murcho (www.dererummundi.blogspot.com)