quinta-feira, 10 de abril de 2008

respostas aos comentários ao texto de Richard Dawkins

Isabel Rebelo,
Obrigado pela tua interessante reflexão. Realmente um crente, tal como um ateu, não tem que pedir desculpas. Mas por vezes parece-me que os crentes respeitam mais o ateísmo dos ateus do que os ateus respeitam a crença dos crentes.
Obrigado também pelos belos poemas. É verdade que alguns crentes teriam dificuldade em justificar as suas crenças, mas as atitudes e os gestos concretos de cada dia são mais importantes do que as palavras, embora estas também sejam necessárias nos momentos oportunos.

Carina,
Realmente não creio que ser ateu seja mais fácil do que ser crente, e por outro lado, os ateus rejeitam um deus que é mais uma caricatura do que a imagem do Deus dos cristãos, por exemplo. Neste sentido, fazem bem em não acreditar nessa caricatura. Mas como estão convencidos que não há nada mais a saber sobre Deus, fecham-se numa aparente certeza definitiva da sua não existência. É também por isso que encontram um conflito entre ciência e religião, conflito que de facto não existe, embora na prática isso nem sempre seja evidente. O famoso caso Galileu é apenas um exemplo.

Sara Patrícia,
Não entendi bem se consideras Deus responsável pelas mortes de inocentes. A que mortes te referes? De qualquer modo, somos nós a humanidade quem deve assumir as responsabilidades que nos cabem. Somos nós que nos matamos uns aos outros.

Ana Barbosa,
Concordo inteiramente com a ideia de cada um escolher livremente a sua posição em relação à religião. Também penso que a liberdade tem que ser informada, e a este nível, muitas pessoas ateias rejeitam um deus que de facto nunca existiu, como já disse antes.

Andreia Ribeiro,
Concordo em absoluto com o que dizes sobre o respeito que devemos ter pela posição dos ateus. Às vezes tenho porém a sensação de que os ateus simplificam demasiado a religião e se fecham ao diálogo, considerando-se na posse de uma verdade definitiva, a da não existência de Deus, criticando, por outro lado, o facto de os crentes terem uma opinião igualmente definitiva acerca da existência de Deus. Não te parece que o poema que nos deixaste é demasiado radical, e talvez mesmo pouco informado?

Joana,
Que apreciação fazes dos argumentos de Dawkins?

Ana Margarida,
Muitos ateus pensam que os crentes não têm quaisquer dúvidas de fé, o que não é verdade. Nunca conseguiremos compreender completamente Deus.

Ângela Silva,
É de facto na liberdade que devemos fazer as nossas opções.

Sara Carvalho,
Estou completamente de acordo. Mas insisto em que faria bem aos ateus manterem alguma abertura de espírito, alguma dúvida sobre as suas posições.

Filomena,
Dizes que ‘o novo ateísmo não precisa negar a fé’. Os ateus que têm publicado livros recentes escritos parecem-me mais agressivos que antes. Obrigado pelo poema.

Jacqueline,
Cada um deve de facto respeitar as opiniões dos outros. Mas por vezes não faz mal desafiarmo-nos uns aos outros a olhar criticamente para aquilo em que acreditamos ou não.

Rui Carneiro,
Obrigado pelo poema. Muitos ateus não acreditam naquilo que consideram absurdo e fazem muito bem. Mas não creio que se deva afirmar que os crentes crêem em coisas absurdas, uma vez que eles não são menos inteligentes que os ateus. Estes têm por vezes ideias muito erradas sobre a religião.

Maria Laura,
A dimensão interior da religião é ignorada pelos ateus pelo próprio facto de não acreditarem que se possa ter uma relação pessoal com Deus. Mas isso é essencial.

Maria do Céu,
De facto as provas da existência de Deus convencem sobretudo quem já crê nele, e os argumentos contra a existência de Deus convencem sobretudo quem já não acredita nele. A relação pessoal com Deus faz parte do núcleo do cristianismo.

Natália Macedo,
Mesmo os ateus que estão do lado de Dawkins pensam que ele é exagerado na sua argumentação, mas o autor acredita que tem que ser radical para ajudar a erradicar a religião. Talvez pudesse utilizar as suas energias de um modo mais construtivo.

Dina,
Por vezes Dawkins parece ser ofensivo e tratar os que discordam dele como se fossem uns ignorantes. De facto, porém, uma mente sã não tem que rejeitar a religião, ao contrário do que pensa o autor.

Marina,
Há questões que não sabemos resolver, mas isso acontece não apenas na religião mas também em outras áreas, incluindo a ciência. Algumas questões, como a guerra, a fome, a injustiça, etc., terão que ser resolvidas por nós. Não creio num Deus paternalista que não respeite a nossa liberdade e não leve a sério a nossa responsabilidade. Obrigado pelo belo poema.

Raquel,
Os fundamentalismos existem em todas as áreas, também em ciência. Correspondem à atitude de quem se considera detentor da verdade e por isso se torna intolerante para com todos os que não estão de acordo com ele. Um pouco de humildade e espírito crítico, só faz bem.


Rafaela,
Também acho o texto demasiado radical.

Helena,
Como já anteriormente disse, cada um tem que assumir livremente as suas posições, mas ninguém está dispensado de procurar criticamente esclarecer-se sobre essas posições. É um caminho sempre por fazer.

Manuel Pereira,
Mesmo os crentes têm algumas dúvidas, e, neste sentido, também são um pouco ateus. É difícil aceitar ateus puros e crentes puros. Este dualismo crentes-ateus, talvez não funcione.

Miguel,
Obrigado pelas tuas considerações interessantes e fundamentadas. Porque não traduzes o livro de Haught? Eu publico-o!

domingo, 9 de março de 2008

ser ateu

Ser ateu não é nada por que se tenha de pedir desculpas. Pelo contrário, é algo de que se deve ter orgulho, e que nos faz andar de cabeça erguida, e olhos postos no horizonte, porque o ateísmo é, quase sempre, sinal de uma indpendência de espírito saudável e, inclusivamente, de uma mente sã. Há muitas pessoas que sabem que lá no fundo são ateias, mas que não ousam admiti-lo perante as famílias, nem mesmo, em alguns casos, perante si próprias. Isto deve-se, em parte, à circunstância de se ter feito da própria palavra 'ateu' um rótulo terrível e assustador.

Richard Dawkins, A Desilusão de Deus.

Respondo a seguir aos comentários ao texto ‘porquê Deus’ I


Jacqueline,
Deus é realmente único, e a ciência, além do conhecimento do universo pode também ajudar-nos a não tomar por Deus aquilo que ele não é.
Alfredo Dinis,sj

Joana,
Muitas vezes chamamos dogmas àquilo que a própria Igreja Católica não considera assim. Os dogmas centrais do cristianismo não se explicam totalmente, mas têm um fundamento suficiente para que a razão nos diga que não são irracionais nem absurdos. Por outro lado, os dogmas não nos proíbem de procurar esclarecer cada vez mais, como dizes, o nosso conhecimento, científico, religioso, filosófico, etc. Hoje torna-se cada vez mais difícil acreditar em Deus e ignorar o conhecimento científico, uma vez que ciência e religião assumem uma grande importância na vida das pessoas.
Alfredo Dinis,sj

Carina,
Realmente a ciência e a religião não se contradizem, mas a verdade é que há muitas pessoas que pensam assim: se se aceita a ciência não se pode aceitar a religião. Não é fácil chegarmos a um consenso. Hoje as pessoas falam pouco de religião talvez porque não têm tempo para se sentarem calmamente. Por isso, falam pouco do que é essencial. Mesmo com a ajuda do telemóvel? As teorias científicas têm ajudado a humanidade a progredir em muitos aspectos, mas não podem prometer senão verdades provisórias, o que não lhes retira valor.
Alfredo Dinis,sj

Helena,
Realmente a ciência não pode prejudicar a religião, pode, pelo contrário, ser-lhe benéfica. Mas há muitos crentes, mesmo com cultura académica, que nem sempre entendem isto. Há teólogos que nada sabem de ciência e não sentem que o conhecimento científico lhes seja necessário.
Alfredo Dinis,sj


Natália,
A religião pode ser benéfica para a ciência, como dizes, porque nos permite ter um conhecimento mais completo e complexo do ser humano. A visão puramente científica do ser humano é empobrecedora e pode abrir a porta a excessos e abusos, como na área da bioética. As críticas que algumas pessoas fazem à religião em nome da ciência são quase sempre apressadas e superficiais, embora nem todas as críticas o sejam.
Alfredo Dinis,sj

Isabel,
O poema de Ricardo Reis que transcreves mostra-nos outra faceta de Fernando Pessoa, um homem muito complexo. Obrigado também pelo poema de Gilberto Gil. Exprime bem o que é a existência humana. Porque é que NÒS permitimos a guerra, a fome e a miséria? Quanto a Dawkins, a sua argumentação baseia-se em pressupostos falsos. Ao contrário do que ele pensa, a religião não pretende explicar aquilo que pertence à ciência explicar. Também ao contrário do que ele pensa, a religião não só não exclui a crítica, mas precisa dela. Etc.
Alfredo Dinis,sj

Sara,
Há que distinguir o que é essencial na religião do que é acessório e secundário. Certos elementos que podem ser importantes para as pessoas (relíquias de santos, promessas, velas…) não são essenciais. Por outro lado, é essencial ao cristianismo a dimensão comunitária da fé, o que não elimina nem dispensa a dimensão pessoal. Mas também aqui, na vivência comunitária da fé, há que distinguir entre o essencial e o acessório. Finalmente, também creio que ciência e religião podem ajudar a humanidade.
Alfredo Dinis,sj

Rafaela,
A fé não é certamente um ponto de chegada no sentido de nos esclarecer todas as coisas. A procura constante que temos que fazer do verdadeiro Deus faz-se não só no íntimo de cada um mas também no diálogo e na partilha em comum desta nossa aventura.
Alfredo Dinis,sj

José,
Porquê Deus? Para muitas pessoas ele não é necessário porque não sentem a sua falta. Encaram a existência humana com naturalidade e sem dramas. Não acreditam em Deus mas também não parecem lamentar que ele não exista. Porque será? Parece que não têm sede dele. Ou têm e não têm consciência disso?
Alfredo Dinis,sj

Ana Margarida,
Realmente, a ciência ajuda a clarificar muitas das crenças religiosas. É a não aceitação deste facto que leva aos fundamentalismos. As pessoas têm a liberdade suficiente para reflectir sobre a fé religiosa e procurarem razões suficientes para essa fé.
Alfredo Dinis,sj

Maria do Céu,
As questões que levanta são muito pertinentes. Hoje muitas pessoas procuram substituir Deus por outras coisas, por exemplo a ciência. Mas o progresso não nos vem apenas da ciência. De tudo o que a ciência e a técnica nos pode oferecer, somente o que nos permite amadurecer em todos os aspectos da nossa humanidade pode ser aceite como progresso. E isso nem sempre acontece.
Alfredo Dinis,sj

Marina,
Quem acredita que Deus está na origem de tudo não nega as explicações científicas. Mas por vezes a ciência pretende explicar mais do que pode. Hoje alguns neurocientistas resumem o amor ao funcionamento de algumas áreas cerebrais, mas a experiência pessoal do amor, diferente de pessoa para pessoa, não se reduz aos neurónios!
Alfredo Dinis,sj

Ana Barbosa,
A leitura actualizada da Bíblia tem permitido avaliar a importância das tradições que se vão criando ao longo dos séculos e distinguir entre as que exprimem o essencial da fé e as que não o exprimem. Por isso se mantêm algumas dessas tradições enquanto que outras se deixam cair.
Alfredo Dins,sj

Respondo a seguir a alguns comentários recentes ao texto 'religião à portuguesa':




Helena,
Sim, a verdade está dentro de nós, e acreditar ou não em Deus não depende de nenhuma demonstração, científica ou filosófica. O que não quer dizer que estejamos dispensados da tarefa de procurarmos entender essa verdade.
Alfredo Dinis,sj

Bruno,
Fé e razão são de facto duas dimensões do ser humano que sempre viverão em diálogo. Não estão destinadas a viver em conflito. O termo ‘mistério’ tem hoje um significado muito negativo. Dizer que há uma dimensão misteriosa na fé religiosa enquanto aspecto que nunca poderemos compreender totalmente com a razão pode não ser bem entendida, embora tenha a sua justificação. Os cristãos precisam de facto, hoje mais do que nunca, de compreender tanto as razões da sua fé como as razões das suas dúvidas de fé. E precisam saber explicar tudo isso aos que não têm fé e os interrogam. Finalmente, o que dizes sobre a tua avó faz-me pensar na distinção entre ‘saber viver’ e ‘saber explicar’. Muitas pessoas sabem explicar muitas coisas mas isso não significa que saibam viver uma vida de qualidade humana. Outras não sabem explicar muitas coisas mas podem ter uma vida de elevada qualidade humana. Também há quem consiga conjugar os dois saberes de forma equilibrada.
Alfredo Dinis,sj

Feliciana,
Hoje muitas pessoas que receberam uma educação cristã quando eram crianças afastaram-se da Igreja e por vezes abandonaram as suas crenças religiosas. Outras, pelo contrário, foram educadas sem referências s Deus e acabaram por acreditar nele quando se tornaram adultos. Por isso, não creio que o facto de algumas famílias educarem os seus filhos numa fé religiosa lhes tire a liberdade de renunciar a ela mais tarde. Em qualquer dos casos, ninguém está de facto dispensado de aderir a Deus de uma forma pessoal e livre.
Alfredo Dinis,sj

Rui,
Se Deus é um ser pessoal, e se nós somos criados à sua imagem e semelhança, então cada um tem com ele uma relação pessoal e conhece-o de uma forma pessoal, - é o que se passa entre os seres humanos - o que não quer dizer que não haja imagens de Deus que dificilmente se possam aceitar. Diversas pessoas têm do Rui imagens diversas, mas o Rui não é o simples somatório dessas imagens, e há algumas delas nas quais o Rui provavelmente não se revê. Por outro lado, a confiança em Deus não nos garante que tudo na vida nos correrá como desejamos. Obrigado pelo belo poema.
Alfredo Dinis,sj

Laura,
Realmente a fé é um caminho que percorremos juntos. É uma experiência que vivemos mas que é aberta a uma procura constante. Neste sentido, a fé nem sempre é fácil, e colocar de lado a questão de Deus pode ser, como dizes, uma solução demasiado fácil.
Alfredo Dinis,sj

Raquel,
Realmente, nunca poderemos dizer que compreendemos Deus mas se acreditamos na sua existência poderemos também acreditar que é fácil para ele compreender-nos e amar-nos. Se não for assim, que sentido teria a nossa fé? Se somos criados à sua imagem e semelhança, alguma coisa em nós é semelhante a ele, mas realmente, não podemos antropomorfizá-lo à nossa vontade. Obrigado pelo interessante vídeo com tão belas fotografias.
Alfredo Dinis,sj

domingo, 2 de março de 2008

Porquê Deus? - I

1. Porquê a ciência, se tenho Deus? A questão da relação entre ciência e religião interessa-me desde há muito tempo, mas devo confessar que não é fácil encontrar pessoas que do lado da religião tenham suficiente informação sobre a ciência, e vice-versa. Mesmo da parte das elites cristãs, como são os teólogos, não é fácil encontrar pessoas que não só estejam informadas sobre os dados científicos, mas que também compreendam, sem desnecessárias ansiedades, as implicações que esses dados poderão ter para a própria teologia. O heliocentrismo defendido por Copérnico e Galileu teve enormes, para não dizer devastadoras, implicações na teologia cristã: destruiu completamente o universo medieval. E isso foi uma "bênção" para a teologia. Sem a revolução copernicana, e toda a revolução cosmológica subsequente, ainda estaríamos hoje a acreditar que o empíreo, a habitação de Deus, dos anjos e dos santos, estava situado por detrás da esfera das estrelas fixas! O evolucionismo proposto por Charles Darwin tem consequências ainda maiores. Contemporaneamente, as ciências cognitivas lançam novos desafios à compreensão do ser humano e da sua experiência religiosa. A teologia só tem a ganhar se levar a sério estes novos dados que lhe vêm da ciência. Os teólogos não se poderão limitar a achar interessantes as teorias científicas, como se não tivessem de as estudar e levar a sério enquanto teólogos. A teologia deve retirar das teorias científicas suficientemente fundamentadas as implicações que introduzam modificações no próprio discurso teológico e na autocompreensão que o cristianismo tem de si mesmo. De outra forma, os teólogos poderão estar a fazer um discurso cada vez mais irrelevante.

2. Imagens incorrectas do cristianismo. Uma ideia muito divulgada entre os críticos da religião em geral e do cristianismo em particular é a de que

a) os crentes se consideram possuidores de uma visão total, coerente e integrada de Deus, do universo e da vida, não tendo portanto quaisquer dúvidas sobre o quer que seja, e que se alguma dúvida surge, ela é prontamente resolvida pelos padres e pelos teólogos;

b) os crentes acreditam em dogmas rigidamente formulados e que não podem ser discutidos criticamente na sua formulação;

c) a crença religiosa é uma questão de se aceitar cegamente até mesmo o que é absurdo, porque foi revelado por Deus;

d) a religião alimenta-se de milagres, de crenças bizarras; etc., etc.

Devo dizer que não me reconheço minimamente em tais caricaturas do cristianismo apresentadas em livros, artigos e textos vários cuja publicação se tem recentemente multiplicado recentemente. Considero além disso que, objectivamente, estas caricaturas não correspondem à realidade do desenvolvimento histórico do cristianismo nem à sua actualidade. Os cristãos não sabem tudo, as dúvidas são elementos integrantes da crença religiosa, e o espírito crítico é fundamental para que a religião não caiam no dogmatismo fundamentalista ou na superstição. Além disso, dualismos como natural/sobrenatural, imanente/transcendente, este mundo e o outro, etc., tradicionalmente relacionados com a crença religiosa, exprimem mal, a meu ver, a auto-compreensão do cristianismo

3. Ler a Bíblia hoje. A interpretação da Bíblia tem conhecido mudanças significativas desde o século XIX, mas a leitura abstracta e literal de passagens que devem ser lidas contextual e, por vezes, metaforicamente, é ainda praticada por muito poucos. Tanto o criacionismo, como a afirmação repetidamente feita pelos críticos do cristianismo acerca do carácter sanguinário do Deus do Antigo Testamento, por exemplo, baseiam-se numa leitura do texto bíblico que já pertence à história. Não há um conceito de Deus no Antigo Testamento, mas vários. Os livros que compõem o Antigo Testamento não constituem um curso sistemático de teologia, mas a interpretação que o povo judeu fez da sua história a partir da crença num Deus único. Quando venciam e destroçavam outros povos, os judeus concluiam que esse Deus estava com eles e lhes ordenava que destruíssem os seus adversários. Mas isso não significa de modo algum que devamos tomar essa interpretação como correspondente ao facto de Deus ser sedento de sangue, de destroços e de despojos.

Alfredo Dinis

Respostas aos comentários ao texto 'Religião à portuguesa'


Caríssimos alunos e alunas: obrigado pelas vossas reflexões sobre o texto de Desidério Murcho, que considero muito interessantes e pertinentes. Li-as todas com atenção e interesse. Respondo a cada um/uma de forma breve. Espero que algumas das questões aqui levantadas possam ser abordadas nas aulas.

Ana,
A compreensão que temos do cristianismo tem evoluído ao longo dos séculos. Há algumas crenças tradicionais que mudaram. Os fundamentos do cristianismo não mudam mas sim a compreensão que temos deles.
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Filomena,
Vale para ti o que digo à Ana. Realmente não há que ter medo em procurar as bases da crença religiosa, mas isso não é tão fácil como parece. Espero que faças progressos neste aspecto.
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj


Carina,
Realmente, a guerra das religiões já pertence ao passado, embora ainda hoje haja num ponto ou noutro do planeta algumas escaramuças. Nada porém que se compare às guerras do passado. Todas as religiões procuram responder a anseios profundos do ser humano, por isso há em todas elas muito de positivo. Nenhuma porém se deve considerar acima de qualquer crítica. Viver a própria religião com espírito crítico permitirá separá-la de elementos que são mais superstição que outra coisa.
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj


Isabel,
Ter fé, não exclui que se tenham dúvidas, incertezas, inseguranças. Os crentes são por vezes apresentados como alguém que vive de dogmas que lhe dão só certezas que desceram do céu, mas isso não corresponde à verdade. O conhecimento humano muda, progride, também em matéria religiosa. Deus encontra-se sobretudo na natureza e numa vida vivida como busca incessante da verdade, da justiça e do amor. A fé não é mais que um grito permanente do ser humano que procura um sentido para a sua vida para além do sentido de todas as coisas. Isto não significa que o que existe e que conhecemos não tenha sentido. Os crentes procuram ‘mais sentido’ neste mundo, não ‘outro sentido’ num ‘outro mundo’.
Fernando Pessoa também é um dos meus poetas preferidos. Já agora deixo-te um belo poema de Sofia de Mello Breyner:
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o marSão a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada
Sophia de Mello Breyner Andresen

Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Maria do Céu,
O seu texto levanta questões interessantes. A ciência tem progredido muito nos últimos quinhentos anos, e é bom termos em conta o que dizem os cientistas, embora sempre com espírito crítico. O mesmo no que se refere à religião, concretamente ao cristianismo. A nossa compreensão dos conteúdos da fé tem evoluído e continuará a evoluir. A ciência tem contribuído para isso. Mas é claro que a ciência não responde às questões levantadas pela religião. É quando os cientistas pretendem poder provar que a religião não tem fundamentos que eles prestam um mau serviço à humanidade.
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Mónica,
Realmente, há pessoas que apresentam caricaturas da religião e não se dão conta disso. Concordo que a ciência não se opõe à fé, embora para muitas pessoas ciência e fé se excluam. Há muitos malentendidos históricos e culturais que não vai ser fácil mudar.

Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Joana,
Espero que resolvas algumas dúvidas, mas não garanto que não adquiras outras que não tens agora!
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Ana Margarida,
Muitas pessoas, em geral não crentes, pedem aos crentes que provem que Deus existe. Mas o que se poderá considerar uma prova de que Deus existe?
Isto não significa que não possamos e devamos procurar aprofundar as razões das nossas crenças, como dizes.
Provavelmente, Deus pode ser ‘visto’ também no tangível. Não poderá ser uma questão da perspectiva a partir da qual se experimenta o mundo?
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Natália,
Há uma diferença entre saber viver e saber explicar. Mesmo que nunca venhamos a conseguir explicar todos os mistérios do universo, poderemos sempre viver com sabedoria e dignidade. Creio que isto corresponde ao que dizes. É também o que penso.
Acreditar em Deus, só por si, não faz com que uma pessoa seja necessariamente melhor que outra que não tem esta crença, seja essa pessoa cientista ou não. Há cientistas que são crentes, não encontram nisto qualquer incompatibilidade. Há cientistas que dizem não necessitar de crenças religiosas. Todos podem alcançar elevados níveis de qualidade de vida, porque pela razão podemos distinguir o que é mal e o que é bem. Nisto a relação com os outros é, como dizes, um factor essencial para identificar um comportamento, seja o de um cientista não crente, seja o de um crente, cientista ou não.
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

Rui,
Dizes: a natureza dá-nos indícios de que Deus existe. Também o nosso coração. Creio que esta é uma das boas formas de falar de Deus. Os indícios não são provas, mas isso não lhes tira valor. Achei o vídeo que referes interessante. A fé em Deus dever-se-ia exprimir no respeito, no amor pela sua criação. A tua ideia de que Deus é energia é interessante, mas não sei de que género de energia falas. Precisamos de um Deus pessoal, de outro modo, para que nos serviria um Deus impessoal? Como já disse anteriormente noutras respostas, as religiões também evoluem, e não tenho razões para não acreditar que muitas das suas normas também mudam porque há nelas mais flexibilidade do que se pensa habitualmente.
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

André,
O que dizes sobre o desaparecimento de certas formas de religião ‘popular’ e ‘tradicional’ parece-me que corresponde aos factos. O que fica então, perguntas. Uma religião ao gosto de cada um? Hoje não temos muitos dos pontos de referência que tiveram os nossos avós, e que lhes dava sossego e paz. Crer hoje é um desafio, uma procura constante, que podemos fazer juntos em vez de querer cada um redescobrir o ‘seu’ Deus. Deus, se existe, não é propriedade de ninguém. Mas acredito que se deixa encontrar por quem o procura honestamente. Mas esta procura não tem fim. Hoje há pessoas que continuam a oferecer crenças religiosas que anestesiam o pensamento. O cristianismo não vai por aí, por mais que isso faça doer!
Obrigado.
Alfredo Dinis,sj

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

religião à portuguesa

Há qualquer coisa de bizarro no modo como a religião é vivida na cultura portuguesa. Vejamos: os mais importantes pensadores da religião cristã procuraram desde sempre distinguir a religião cristã, enquanto um sistema justificável e sofisticado de crenças verdadeiras, da mera crendice e da superstição. É verdade que podemos defender que, historicamente, esta atitude dos filósofos da religião teísta é meramente a continuação da atitude de Paulo, que precisava de vender o cristianismo a um povo civilizado e culto, no Império Romano, mostrando que o cristianismo era uma "filosofia superior" às filosofias pagãs, e não apenas uma crendice de povos ignorantes do deserto. Podemos argumentar, e é sem dúvida plausível, que a religião é intrinsecamente crendice, e que é na religião popular que se encontra a verdadeira religião, e não nas sofisticadas elucubrações dos mais importantes filósofos religiosos, de Agostinho a Tomás de Aquino, passando por Ockham e avançando até Leibniz ou até à actualidade, com Swinburne e Plantinga.

Apesar de tudo isto, a verdade é que há toda uma concepção sofisticada da religião, assim como toda uma tradição de discussão filosófica séria sobre estes temas. Ora, sempre que escrevo qualquer coisa neste blog tentando informar os leitores de tal discussão, tenho sempre uma reacção muito bizarra de alguns leitores crentes. A reacção varia entre a assunção de que realmente a religião é mera crendice popular, o que é uma afirmação surpreendente para um crente, e o protesto de que a religião está para lá do pensamento "logicista" — querendo com isto dizer o tipo de pensamento sofisticado e cuidadoso que é tradicional nesta área, tal como foi desenvolvido por Agostinho, Anselmo, Tomás ou Leibniz, para dar só uns exemplos.

O que pensar disto? Será que a religião à portuguesa tem de ser a religião da Titi do Raposão, que Eça descreve em A Relíquia? Uma religião feita de crendice e superstição? Um pensamento religioso hipócrita, sempre com medo que, ao pensar cuidadosamente, se descubra que afinal não há justificação defensável para a crença religiosa? Se for isto, é a suprema duplicidade intelectual: trata-se de afastar à partida a possibilidade de descobrir que a nossa crença religiosa é injustificável. Mas qualquer filósofo religioso diria que isto significa apenas que a fé destas pessoas é terrivelmente insegura: quem acredita realmente que a crença religiosa é justificável não tem medo de estudar cuidadosamente as bases de tal justificação, pois acredita firmemente que as vai descobrir.

Isto é deplorável, evidentemente. Mas é talvez surpreendente e informativo saber que uma razão para este tipo de atitude é... o cientismo. O cientismo é, em traços gerais, a ideia de que só a ciência e os métodos da ciência podem produzir resultados. De modo que se não vislumbramos tais métodos para discutir questões religiosas, se tudo o que vemos é a discussão aberta cuidadosa, com argumentos e contra-argumentos, objecções e refinamentos de posições, isso parece uma pura perda de tempo. Kant foi um dos primeiros filósofos a sofrer de cientismo e por isso declarou que todos os argumentos tradicionais a favor da existência de Deus eram meras ilusões, sendo intrinsecamente impossível provar se Deus existe ou não — o que ele queria dizer é que é cientificamente impossível provar tal coisa e não vale a pena andar com discussões estéreis. Acontece que esta posição é auto-refutante: pois se não se consegue provar cientificamente que Deus existe, nem que não existe, como raio conseguimos provar que não se consegue provar? Não é tal pretensa prova tão falha de cientificidade como qualquer tentativa de provar que Deus existe? Claro que sim. Essa pretensa prova é apenas um argumento tipicamente filosófico, tal como as provas tradicionais a favor da existência de Deus.

A procura da verdade provoca angústia a quem sofre de cientismo porque é tipicamente uma procura aberta, isto é, uma procura sem que tenhamos metodologias que garantam resultados. Esta angústia é um dos grandes disparates do nosso tempo, e o sistema de ensino em que estamos mergulhados tem muitas culpas no cartório. Muitas pessoas pensam que procurar a verdade só pode ser feito assim: vestimos uma bata branca, vamos para um laboratório, aplicamos as metodologias, e temos a garantia de obter resultados. Mas isto é apenas uma pequena parte da procura da verdade. Muitas vezes não sabemos sequer qual é a melhor metodologia; e não temos qualquer garantia de obter resultados. Que fazer, nessa circunstância? O cientismo diz-nos: abandona tal pretensão, pois só pode ser ilusão e sofisma. E assim a alternativa é um ateísmo ignaro ou a crendice da Titi do Raposão, que vê a religião apenas como uma espécie de masturbação espiritual, em que cada qual fala da fenomenologia da sua crendice, como se fosse a coisa mais interessante do universo.

Escusado será dizer, penso que as duas atitudes são insustentáveis e que se baseiam em confusão intelectual. Procurar a verdade é continuar a procurar mesmo que não tenhamos metodologias nem garantias. Procurar a verdade é pensar como pensamos normalmente, e não inventar sofistas sobre os limites do pensamento "logicista" — ignorando que, ironicamente, as únicas alternativas actuais ao pensamento "logicista" são precisamente as lógicas não-clássicas desenvolvidas nas últimas décadas, e não elucubrações sofísticas baseadas em jogos de palavras simplórios. Procurar a verdade é não deitar areia para os olhos das pessoas, não disfarçar um discurso redondo e circular com palavras caras e referências falsamente eruditas. Procurar a verdade é estudar quem discorda de nós, e não começar por escolher cuidadosamente os autores que dizem precisamente o que queremos ouvir, para depois os usarmos como a palavra final sobre o tema. Procurar a verdade é não impedir a discussão em curso pondo em causa os termos da própria discussão, sem qualquer razão convincente excepto o medo que temos de que tal discussão não justifique o que queremos justificar.

Finalmente, é importante dizer o seguinte: a generalidade das pessoas é incapaz de justificar adequadamente quer o seu ateísmo quer a sua crença religiosa. Isto é normal e não há qualquer problema com isso. Eu não sei justificar adequadamente a minha crença de que houve um Big Bang — não sou físico, não tenho os conhecimentos para isso. Faz parte da ciência e da filosofia a procura de justificação das nossas crenças mais básicas — por vezes descobrimos que têm justificação, outras vezes que não têm. Como somos muito limitados, quem sabe justificar o Big Bang não sabe geralmente justificar a sua crença ou descrença religiosa, e vice-versa. É conversando entre todos que podemos alargar a nossa compreensão das coisas. Mas isso exige que não se use a duplicidade intelectual para pôr fora de jogo tudo aquilo que à partida nos parece desfavorável às nossas crenças mais queridas. Estar disposto a abandonar as nossas crenças mais queridas é a condição de possibilidade da genuína procura da verdade.
Desiderio Murcho (www.dererummundi.blogspot.com)